Direito de Família na Mídia
São Paulo tem 350 mil crianças ‘sem pai’
03/07/2007 Fonte: Jornal Correio PopularFabiano Ormaneze/ Da Agência Anhangüera
Mutirão que será realizado em agosto em todo o Estado vai incentivar o reconhecimento consensual da paternidade
Ao mostrar sua carteira de identidade, a empregada doméstica Celina Ferreira de Sá sente-se um tanto desprezada e um outro tanto esquecida por personagens de sua própria história. Os olhos não choram, mas ainda hoje, marejam. Pai desconhecido é o que se lê no documento, no espaço que seria destinado à filiação. Quando nasceu, Celina não foi reconhecida pelo pai, mesma situação em que se encontram pelo menos 350 mil alunos de escolas públicas de ensinos Fundamental e Médio no Estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria de Educação. Não ter o nome daquele que ajudou a gerá-la não a impediu de sobreviver, mas conferiu à sua existência um sentimento de abandono, algumas cenas constrangedoras e uma lacuna que, mesmo com todo o carinho da mãe, não foi possível ser preenchida.
Apesar das estimativas da quantidade de estudantes sem reconhecimento paterno, o número total é desconhecido. Não se sabe, ao certo, quantos registros feitos nos cartórios têm apenas informações sobre a mãe no espaço em que deveriam figurar os nomes de um homem e de uma mulher. "A relação familiar é fundamental e eu nunca pude senti-la por completo. Nunca esperei ver meu pai morando com minha mãe, mas sonhei, pelo menos, em poder abraçá-lo", diz Celina
A partir de amanhã, uma iniciativa da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo pretende dar uma nova oportunidade para que crianças, jovens e adultos não-reconhecidos pelos pais tenham um destino diferente do vivenciado por Celina. Um projeto, nomeado de Paternidade Responsável, pretende, por meio de um processo administrativo, reunir na Justiça os supostos pais e estimular que eles reconheçam, espontaneamente, os filhos para os quais ajudaram a dar vida.
Quando era uma criança, em todas as primeiras quinzenas de agosto, Celina se deparava com um papel em branco sobre a carteira onde deveria fazer o cartão do Dia dos Pais. No entanto, escrever para quem? O que escrever a um homem que poucas vezes ela havia visto? "Eu sentia vergonha por não ter um pai por perto", conta ela. Nem raiva era possível demonstrar. "Nunca tive ódio, apenas me sentia inferior por não poder expressar amor." Como morava numa cidade pequena, no Interior de Pernambuco, enfrentava também preconceitos. Tentando impedir o que, na visão do povo, seriam más influências, outras famílias proibiam que seus filhos brincassem com ela. "A menina sem pai da vila", como ela se recorda que era chamada, não tinha raízes sólidas suficientes para a convivência social.
Quando a mãe de Celina engravidou, o pai resolveu abandoná-la. Mudou-se de cidade e poucos foram os contatos entre os dois. Aos 28 anos, Celina se acostumou com sua realidade, mas não consegue apagar as marcas que a situação lhe imputou. Ela se considera insegura, indecisa e os medos lhe parecem grandes demais. "O fato de meu pai ter abandonado minha mãe me deixou com dificuldades para confiar nos outros", reforça. Balançar uma criança que a possa chamar de mãe também é um desejo que nunca teve, ofuscado pelos seus receios. "Nunca quis ter um filho porque tenho medo dele ser abandonado pelo pai, como eu fui." Com a voz embargada, ela olha para o chão e lembra que, agora, não terá mais oportunidade de ser reconhecida, pois o pai morreu há poucos meses. "Com a morte dele, foi embora a última oportunidade. Essa situação não pode acontecer com outras pessoas", enfatiza.
Projeto
O próximo Dia dos Pais poderá ser diferente para muitos filhos. Um documento novo, mais completo, pode selar a data. Sob a coordenação do juiz da 1 Vara de Família e Sucessões de Campinas, Luiz Antônio Alves Torrano, o projeto Paternidade Responsável fará inscrições até o próximo dia 16 para um mutirão de sessões entre os supostos pais e as mães. As mulheres cuja paternidade dos filhos não foi reconhecida ou até mesmo adultos que queiram requerer o reconhecimento devem ir até a Cidade Judiciária ou ao Palácio da Justiça, no Centro, com uma cópia do documento de identidade, da certidão de nascimento e o endereço completo do suposto pai. A Justiça enviará, então, um notificação para que ele compareça no dia 12 de agosto, num horário a ser determinado, para participar de uma sessão com um juiz.
"Será uma oportunidade para reconhecer espontaneamente a paternidade dos filhos, sem nenhuma medida judicial. Havendo esse reconhecimento, será emitido imediatamente o mandado de averbação, que exige uma correção dos dados na certidão de nascimento", explica Torrano.
Apesar de não ser um processo judicial, todas as decisões serão tomadas diante de um juiz e em segredo de Justiça. Torrano explica que não haverá nenhum custo para aqueles que se inscreverem, nem a necessidade de acompanhamento do caso por um advogado. Durante a sessão, os filhos não precisam comparecer. "Apenas a mãe deverá vir, para evitarmos constrangimentos que prejudiquem ainda mais a situação da criança ou do adolescente."
Se aquele que for alegado como pai não comparecer à audiência ou não reconhecer espontaneamente o filho, o caso poderá ser encaminhado à defensoria pública para que seja pedida uma investigação de paternidade ou a realização do exame de DNA, que vai comprovar ou refutar a suspeita
Campinas terá projeto mais abrangente
Iniciativa estadual, o projeto Paternidade Responsável inicialmente seria realizado apenas nas escolas públicas. Campinas, no entanto, expandiu a proposta. Na proposta original, a pedido da Justiça, as secretarias dos colégios levantariam o nome dos alunos que não têm a paternidade reconhecida oficialmente. As mães desses estudantes seriam convidadas a indicar o nome do suposto pai para que ele fosse convocado para uma audiência com o juiz. Em Campinas, apesar do trabalho de esclarecimento e informação feito nas escolas, pessoas que não estejam matriculadas também podem requerer o reconhecimento da paternidade. "A proposta vai abranger todos. Inclusive adultos poderão participar, indicando seus supostos pais", diz o juiz da 1 Vara de Família e Sucessões, Luiz Antônio Torrano. Durante o projeto piloto, realizado em dezembro do ano passado em duas escolas estaduais da zona Leste de São Paulo, 240 mães foram convidadas a participar. Depois de receberem um comunicado por meio dos diretores das escolas, 130 mulheres manifestaram interesse e declararam o nome dos supostos pais, notificados posteriormente. No dia 9 de dezembro, foram atendidos 76 casos, que resultaram em 36 reconhecimentos espontâneos, além de encaminhamentos para investigação de paternidade. Os resultados foram além disso: na ocasião, companheiros e maridos das mães também compareceram às sessões para manifestar o interesse em adotar e reconhecer a paternidade de seus enteados. (FO/AAN)
SAIBA MAIS
As inscrições para o projeto Paternidade Responsável podem ser feitas na sala 106, do Bloco A, na Cidade Judiciária ou na Sala 2 do Palácio da Justiça, no Centro. Em ambos os locais, o horário de atendimento será das 13h às 18h, nos dias úteis.
Iniciativa é reflexo de uma cobrança social
Sem a figura paterna, filhos perdem referenciais e, muitas vezes, sofrem com o preconceito
Desde sempre, o pai é o modelo de herói que a maioria das crianças constrói. Para as rodas de amigos, levam os "feitos heróicos" e orgulham-se das conquistas paternas. Imagine, no entanto, ouvir o amigo falar maravilhas de uma figura que você não conheceu ou então que o abandonou no meio de sua jornada. Para os especialistas, esse papel cultural e a necessidade de reconhecer raízes demonstram que ter um pai e ser aceito como filho vão muito além de uma pensão alimentícia e do fato de possuir um sobrenome. Quando uma criança balbucia um "papai", o que faz é reconhecer um herói, o qual pode abraçar, demonstrar carinho e, acima de tudo, reconhecer um exemplo a seguir.
O reconhecimento da paternidade, segundo a psicóloga Rita Khater, da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), é essencial na formação da identidade e deixa marcas muito claras em toda a vida da pessoa. "A cultura prestigia figura paterna e, por esse motivo, ela passa a ser vital. O peso cultural de não ter um pai é muito maior do que o peso psicológico", explica. Ao analisar o projeto Paternidade Responsável, a especialista afirma que a iniciativa é um reflexo dessa cobrança social.
Apesar de afirmar que a presença paterna não é determinante na formação da identidade de uma pessoa, a psicóloga ressalta a importância da figura masculina. Nesse processo de desenvolvimento, a presença do homem é essencial para a concepção das diferenças entre os sexos. A ausência dessa figura pode trazer implicações ou dificuldades de personalidade. "A pessoa pode, por exemplo, se tornar alguém mais amargo, por causa da cobrança da sociedade. É mais fácil dizer que o pai morreu do que dizer que ele não existe", compara Rita.
Para reforçar a importância das raízes familiares, ela cita o exemplo de um menino que não teve sua paternidade reconhecida. Por isso, ele pode carregar consigo outra dificuldade: "O modelo de pai não é decisivo, mas é importante no exercício da paternidade que alguém venha a desempenhar. Uma pessoa que não teve pai pode encontrar dificuldades para desempenhar essa mesma função, já que lhe faltam modelos."